Por que algo tão básico ainda é um problema?
Compartilho aqui no meu blog este artigo que escrevi para a revista Progress in Mind.
O mundo era mais simples na antiguidade, quando plantas e
substâncias de origem animal eram usados para fins curativos e quando os
alquimistas viviam em busca do elixir da vida eterna. Em contrapartida,
morria-se em torno dos 40 anos quando, atualmente, olhando somente o Brasil, a
expectativa de vida é de 74 anos.
Um dos fatores atribuídos à maior longevidade é o avanço
de opções terapêuticas que antes sequer existiam.
Mas o desenvolvimento de um novo medicamento é tão trabalhoso
e custoso que não é a toa que o número de drogas inovadoras que chegam ao
mercado mundial vem diminuindo. O número tem decrescido ao longo do tempo: de
1995 a 1999, uma média de 40 novas moléculas foram lançadas por ano. De 2000
até 2007, foram apenas 27. Considerando que a inovação em medicamentos
é incipiente no Brasil, estes números traduzem uma realidade mundial onde, por
exemplo, existem parcerias do setor produtivo com a universidade, algo ainda pouco
explorado por aqui.
Munidos do conhecimento de uma doença, cientistas começam
a procurar, após anos de pesquisa e testes, por uma droga que possa agir na
doença estudada. A busca deste composto pode ser na natureza ou através da
criação de uma molécula química completamente nova, utilizando sofisticados
modelos computacionais para prever que tipo que estrutura molecular pode
funcionar. Muitas vezes é utilizada uma técnica de tecnologia computacional
chamada “triagem de alta capacidade”.
Com ela, pesquisadores testam milhares de compostos contra um receptor-alvo
para identificar algum que possa ser promissor o suficiente para seguir para
estudos posteriores.
Estima-se que, após começarem com aproximadamente 5 – 10
mil compostos, cientistas podem chegar a apenas cinco moléculas candidatas a prosseguirem
com estudos pré-clínicos e clínicos. Ainda assim, todas podem vir a falhar em
alguma fase dos estudos. Não é raro que, após anos de pesquisa, uma molécula
não chegue a completar os estudos clínicos fase 3, já na reta final.
Da mesma forma, equipes de desenvolvimento químico precisam
garantir a síntese da molécula ativa vencedora, o fármaco. Outra equipe de
pesquisa farmacotécnica precisa combinar os excipientes certos na melhor forma
farmacêutica capaz de tornar o fármaco disponível na concentração certa na
corrente sanguínea. E será esta formulação a ser utilizada nos estudos clínicos
e, posteriormente, na produção em larga escala.
Este é o dia-a-dia de empresas que fazem pesquisa e
desenvolvimento de medicamentos. O resumo foi breve, mas fornece uma pequena ideia
do universo de detalhes envolvidos quando um medicamento novo chega ao mercado,
principalmente no que tange ao processo produtivo e na qualidade das
matérias-primas.
Estes fatores são tão importantes que qualquer inconformidade
na produção ou mesmo na qualidade do princípio ativo ou dos excipientes pode
afetar a biodisponibilidade da droga. E são estes pontos que vamos ver a seguir
com maior detalhe.
Quando falamos em conformidade durante a produção, é imprescindível
falar sobre Boas Práticas de Fabricação (BPF).
O conceito de BPF surgiu
decorrente de graves problemas com medicamentos no mercado.
Em 1937, houve 107 mortes por intoxicação em massa com um elixir de
Sulfanilamida nos Estados Unidos. A Glicerina que estava em falta no mercado
foi substituída pelo Etilenoglicol sem que tenham sido realizados os testes de segurança e toxicidade
necessários.
Em 1967 houve a intoxicação de
crianças que sofriam de epilepsia e utilizavam cápsulas de 100 mg de Fenantoína
em um hospital na Austrália. O fabricante havia substituído o diluente Sulfato de Cálcio por Lactose também
devido a falta no mercado. Autópsias das vítimas revelaram que os níveis
sangüíneos do fármaco haviam subido para mais de 45 mcg por mililitro na
formulação modificada.
Em 1958, um
hospital pediátrico nos EUA identificou o aumento de mamas e outras mudanças
relacionadas com hormônios em crianças entre 5 e 10 anos tratadas com um
produto vitamínico. A investigação demonstrou que as cápsulas estavam
contaminadas com estrógeno devido a limpeza deficiente do equipamento usado na
fabricação (produtos estrogênicos e vitamínicos fabricados alternados no mesmo
equipamento).
Assim, em 1963
os EUA foram os primeiros a publicar uma norma que estabelecia requisitos
especiais para a fabricação de
medicamentos.
Em 1975 a Organização Mundial de Saúde (OMS)
publicou o seu guia, que foi adotado como
referência legal pelos países do MERCOSUL.
Até 1995, Brasil,
Argentina, Paraguai e Uruguai deveriam ter adotado a última versão preparada
pelo 32º Comitê de Peritos, aceita pela Assembléia Mundial da OMS.
Mas apenas com a
criação da Anvisa em 1999 impulsionou-se a publicação sobre BPF no Brasil
através da RDC 134 em 2001, revogada pela RDC 210 em 2003 até ser substituída
pela atual RDC 17, vigente desde 2010. As empresas que não cumprirem as normas
de Boas Práticas presentes nas diretrizes da RDC, além de perderem seu
certificado em BPF, podem sofrer penalidades legais (multas), suspensão temporária
de suas atividades, retirada de produtos da Autorização de funcionamento, ou
até mesmo interdição de suas atividades. Entretanto, dependendo da natureza do
problema, as perdas em saúde podem ser imensuráveis.
Infelizmente não é raro vermos
em noticiários que estes problemas ainda persistem nos dias de hoje.
Logo, “as BPF de medicamentos é
a parte da garantia da qualidade que assegura que os produtos sejam fabricados
em conformidade e controlados em relação aos padrões de qualidade solicitados pelo
registro sanitário do produto”.
Da mesma forma, os princípios
ativos e excipientes usados na formulação podem influenciar, e muito, na qualidade
dos medicamentos.
Diversos fatores relacionados a
matérias primas podem afetar a qualidade final de um medicamento. No presente
momento daremos ênfase ao polimorfismo. Atualmente, o polimorfismo em fármacos é,
sem dúvida, uma das linhas de pesquisa mais contempladas da área de ciências
farmacêuticas, devido à relevância não apenas econômica, mas, principalmente,
farmacológica e toxicológica.
Empresas que precisam adotar um
preço mais baixo para seus produtos, seja por políticas públicas, seja por
políticas de preço específicas à categoria do medicamento a qual pertence, seja
para manterem-se competitivas no mercado, precisam estar atentas na procedência
das matérias-primas (fármaco/substância ativa e excipientes) que adquirem no
dia-a-dia.
Devemos nos
atentar que estamos falando de substâncias químicas que são sintetizadas, ou
seja, produzidas quimicamente. Diferentes rotas de síntese podem levar a um
mesmo composto. Entretanto, durante esta produção, além da substância-alvo há,
no meio reacional, “sobras” dos componentes de partida, além de outros
subprodutos de reação. Remover a substância de interesse com elevado grau de
pureza exige, portanto, processos de purificação que são diretamente
proporcionais ao custo.
Geralmente o processo
de purificação mais utilizado é um processo chamado cristalização. O problema é
que muitos compostos orgânicos são capazes de adotar uma ou mais formas
cristalinas, dependendo das condições (temperatura, solvente, tempo) sob as
quais a cristalização é induzida.
Logo, a
propriedade pela qual uma única substância pode existir em mais de uma forma ou
estrutura cristalina é chamada de polimorfismo.
Vale ressaltar que o polimorfismo pode ter um impacto direto sobre diversas
características do fármaco, excipientes e, consequentemente do medicamento,
podendo ser observados resultados inesperados, os quais podem comprometer a
eficácia do medicamento.
Dois polimorfos de um mesmo composto podem ser tão
diferentes em estrutura cristalina e propriedades quanto dois compostos
distintos. O exemplo mais clássico e extremo que conhecemos de poliformismo é o
do grafite e do diamante: estes dois
minerais são compostos de C (carbono elementar) mas, em virtude da organização
cristalina de cada um, apresentam propriedades químicas e físicas totalmente
diferentes.
Estruturas
polimórficas de um fármaco normalmente apresentam diferenças significativas de
processabilidade, solubilidade, estabilidade física e química. Estas diferenças
físico-químicas podem modificar o comportamento da molécula quando em um meio
biológico, alterando sua biodisponibilidade e, consequentemente, sua eficácia. Os
excipientes também podem apresentar transformações polimórficas, sendo um fator
não menos preocupante para a indústria farmacêutica.
Tendo em vista a
importância do fenômeno do polimorfismo para a qualidade dos medicamentos, os
órgãos reguladores têm acelerado a adoção de novas normas sobre o tema no setor
farmacêutico, de modo a minimizar os riscos à população, exigindo, para o registro de medicamentos, estudos que
comprovem o monitoramento e o controle de qualidade das formas cristalinas
existentes.
O guia mais
completo atualmente disponível foi publicado pela agência regulatória
americana, FDA (U.S. Food and Drugs
Administration), em julho de 2007. Nesse guia, a FDA aborda os principais
aspectos do fenômeno sobre a qualidade dos medicamentos e destaca a
responsabilidade da empresa no controle da forma cristalina caso a biodisponibilidade
possa ser afetada.
A ANVISA também
possui regulamentação em que o tema polimorfismo é abordado. Neste caso, é
solicitado para o registro de medicamentos informações sobre os prováveis
polimorfos. A questão é que estas informações também são
solicitadas apenas durante o momento do
registro e para a substância ativa. Até mesmo em uma alteração pós-registro,
testes específicos somente são previstos para a substância ativa.
A
preocupação com a qualidade dos medicamentos liberados para a população é tão
real, que a Anvisa lançou, em 14 de Setembro de 2014, o Programa Nacional de
Verificação da Qualidade de Medicamentos (Proveme) que visa analisar
mensalmente amostras de medicamentos do mercado. Inicialmente o Proveme vai
analisar amostras dos medicamentos do “Aqui Tem Farmácia Popular” e do “Farmácia
Popular”.
Portanto, se após
o registro a empresa modificar o fornecedor de matérias-primas no dia-a-dia sem
realizar os testes prévios que são necessários, um produto pode vir a ser
liberado por uma empresa com qualidade insatisfatória, o que muitas vezes é
identificado por consumidores mais atentos através de reclamações, gerando
publicações de recolhimentos no Diário Oficial da União e no próprio site da
Anvisa.
Mecanismos de controle e punição posteriores poderiam
ser evitados considerando que a prevenção pelas próprias empresas seria bem
mais fácil. E se ainda vemos notícias de problemas de qualidade nos jornais,
devemos concordar com Henry Ford (1963-1947) através de sua célebre frase que
diz: “qualidade significa fazer certo
quando ninguém está olhando”.
Referências
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A. M. O. A. Drug Discovery and Development: Understanding the R&D Process. Washington, DC.
Fevereiro 2007
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-
Resolução Anvisa RDC Nº 60, de 10 de Outubro de 2014.
- Dispõe sobre os critérios para a concessão renovação do registro de
medicamentos com princípios ativos sintéticos e semissintéticos, classificados
como novos, genéricos e similares, e dá outras providências.
- Resolução Anvisa
RDC Nº
48, de 6 de outubro de 2009. Dispõe sobre realização de alteração, inclusão,
suspensão, reativação, e cancelamento pós-registro de medicamentos e dá outras
providências.
- Site Anvisa.
Disponível: http://portal.anvisa.gov.br/wps/content/anvisa+portal/anvisa/sala+de+imprensa/menu+-+noticias+anos/2014+noticias/ministro+da+saude+e+diretores+da+anvisa+lancam+programas+de+monitoramento. Acesso em
25/05/2015
- Site Anvisa.
Disponível: http://portal.anvisa.gov.br/wps/content/Anvisa+Portal/Anvisa/Pos+-+Comercializacao+-+Pos+-+Uso/Fiscalizacao/Produtos+e+Empresas+Irregulares/Medicamentos. Acesso em
25/05/2015
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