segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Qualidade em Medicamentos 
Por que algo tão básico ainda é um problema?

Compartilho aqui no meu blog este artigo que escrevi para a revista Progress in Mind.

O mundo era mais simples na antiguidade, quando plantas e substâncias de origem animal eram usados para fins curativos e quando os alquimistas viviam em busca do elixir da vida eterna. Em contrapartida, morria-se em torno dos 40 anos quando, atualmente, olhando somente o Brasil, a expectativa de vida é de 74 anos.
Um dos fatores atribuídos à maior longevidade é o avanço de opções terapêuticas que antes sequer existiam.
Mas o desenvolvimento de um novo medicamento é tão trabalhoso e custoso que não é a toa que o número de drogas inovadoras que chegam ao mercado mundial vem diminuindo. O número tem decrescido ao longo do tempo: de 1995 a 1999, uma média de 40 novas moléculas foram lançadas por ano. De 2000 até 2007, foram apenas 27. Considerando que a inovação em medicamentos é incipiente no Brasil, estes números traduzem uma realidade mundial onde, por exemplo, existem parcerias do setor produtivo com a universidade, algo ainda pouco explorado por aqui.
Munidos do conhecimento de uma doença, cientistas começam a procurar, após anos de pesquisa e testes, por uma droga que possa agir na doença estudada. A busca deste composto pode ser na natureza ou através da criação de uma molécula química completamente nova, utilizando sofisticados modelos computacionais para prever que tipo que estrutura molecular pode funcionar. Muitas vezes é utilizada uma técnica de tecnologia computacional chamada “triagem de alta capacidade”. Com ela, pesquisadores testam milhares de compostos contra um receptor-alvo para identificar algum que possa ser promissor o suficiente para seguir para estudos posteriores.
Estima-se que, após começarem com aproximadamente 5 – 10 mil compostos, cientistas podem chegar a apenas cinco moléculas candidatas a prosseguirem com estudos pré-clínicos e clínicos. Ainda assim, todas podem vir a falhar em alguma fase dos estudos. Não é raro que, após anos de pesquisa, uma molécula não chegue a completar os estudos clínicos fase 3, já na reta final.
Da mesma forma, equipes de desenvolvimento químico precisam garantir a síntese da molécula ativa vencedora, o fármaco. Outra equipe de pesquisa farmacotécnica precisa combinar os excipientes certos na melhor forma farmacêutica capaz de tornar o fármaco disponível na concentração certa na corrente sanguínea. E será esta formulação a ser utilizada nos estudos clínicos e, posteriormente, na produção em larga escala.
Este é o dia-a-dia de empresas que fazem pesquisa e desenvolvimento de medicamentos. O resumo foi breve, mas fornece uma pequena ideia do universo de detalhes envolvidos quando um medicamento novo chega ao mercado, principalmente no que tange ao processo produtivo e na qualidade das matérias-primas.
Estes fatores são tão importantes que qualquer inconformidade na produção ou mesmo na qualidade do princípio ativo ou dos excipientes pode afetar a biodisponibilidade da droga. E são estes pontos que vamos ver a seguir com maior detalhe.
Quando falamos em conformidade durante a produção, é imprescindível falar sobre Boas Práticas de Fabricação (BPF).
O conceito de BPF surgiu decorrente de graves problemas com medicamentos no  mercado.  Em 1937, houve 107 mortes por intoxicação em massa com um elixir de Sulfanilamida nos Estados Unidos. A Glicerina que estava em falta no mercado foi substituída pelo Etilenoglicol sem que tenham sido realizados  os testes de segurança e toxicidade necessários.
Em 1967 houve a intoxicação de crianças que sofriam de epilepsia e utilizavam cápsulas de 100 mg de Fenantoína em um hospital na Austrália. O fabricante havia substituído o diluente Sulfato de Cálcio por Lactose também devido a falta no mercado. Autópsias das vítimas revelaram que os níveis sangüíneos do fármaco haviam subido para mais de 45 mcg por mililitro na formulação modificada.
Em 1958, um hospital pediátrico nos EUA identificou o aumento de mamas e outras mudanças relacionadas com hormônios em crianças entre 5 e 10 anos tratadas com um produto vitamínico. A investigação demonstrou que as cápsulas estavam contaminadas com estrógeno devido a limpeza deficiente do equipamento usado na fabricação (produtos estrogênicos e vitamínicos fabricados alternados no mesmo equipamento).
Assim, em 1963 os EUA foram os primeiros a publicar uma norma que estabelecia requisitos especiais  para a fabricação de medicamentos.
Em 1975 a Organização Mundial de Saúde (OMS) publicou o seu guia, que foi adotado como referência legal pelos países do MERCOSUL.
Até 1995, Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai deveriam ter adotado a última versão preparada pelo 32º Comitê de Peritos, aceita pela Assembléia Mundial da OMS.
Mas apenas com a criação da Anvisa em 1999 impulsionou-se a publicação sobre BPF no Brasil através da RDC 134 em 2001, revogada pela RDC 210 em 2003 até ser substituída pela atual RDC 17, vigente desde 2010. As empresas que não cumprirem as normas de Boas Práticas presentes nas diretrizes da RDC, além de perderem seu certificado em BPF, podem sofrer penalidades legais (multas), suspensão temporária de suas atividades, retirada de produtos da Autorização de funcionamento, ou até mesmo interdição de suas atividades. Entretanto, dependendo da natureza do problema, as perdas em saúde podem ser imensuráveis.
Infelizmente não é raro vermos em noticiários que estes problemas ainda persistem nos dias de hoje.
Logo, “as BPF de medicamentos é a parte da garantia da qualidade que assegura que os produtos sejam fabricados em conformidade e controlados em relação aos padrões de qualidade solicitados pelo registro sanitário do produto”.
Da mesma forma, os princípios ativos e excipientes usados na formulação podem influenciar, e muito, na qualidade dos medicamentos.
Diversos fatores relacionados a matérias primas podem afetar a qualidade final de um medicamento. No presente momento daremos ênfase ao polimorfismo. Atualmente, o polimorfismo em fármacos é, sem dúvida, uma das linhas de pesquisa mais contempladas da área de ciências farmacêuticas, devido à relevância não apenas econômica, mas, principalmente, farmacológica e toxicológica.
Empresas que precisam adotar um preço mais baixo para seus produtos, seja por políticas públicas, seja por políticas de preço específicas à categoria do medicamento a qual pertence, seja para manterem-se competitivas no mercado, precisam estar atentas na procedência das matérias-primas (fármaco/substância ativa e excipientes) que adquirem no dia-a-dia.
Devemos nos atentar que estamos falando de substâncias químicas que são sintetizadas, ou seja, produzidas quimicamente. Diferentes rotas de síntese podem levar a um mesmo composto. Entretanto, durante esta produção, além da substância-alvo há, no meio reacional, “sobras” dos componentes de partida, além de outros subprodutos de reação. Remover a substância de interesse com elevado grau de pureza exige, portanto, processos de purificação que são diretamente proporcionais ao custo.
Geralmente o processo de purificação mais utilizado é um processo chamado cristalização. O problema é que muitos compostos orgânicos são capazes de adotar uma ou mais formas cristalinas, dependendo das condições (temperatura, solvente, tempo) sob as quais a cristalização é induzida.
Logo, a propriedade pela qual uma única substância pode existir em mais de uma forma ou estrutura cristalina é chamada de polimorfismo. Vale ressaltar que o polimorfismo pode ter um impacto direto sobre diversas características do fármaco, excipientes e, consequentemente do medicamento, podendo ser observados resultados inesperados, os quais podem comprometer a eficácia do medicamento.
Dois polimorfos de um mesmo composto podem ser tão diferentes em estrutura cristalina e propriedades quanto dois compostos distintos. O exemplo mais clássico e extremo que conhecemos de poliformismo é o do grafite e do diamante: estes dois minerais são compostos de C (carbono elementar) mas, em virtude da organização cristalina de cada um, apresentam propriedades químicas e físicas totalmente diferentes.
Estruturas polimórficas de um fármaco normalmente apresentam diferenças significativas de processabilidade, solubilidade, estabilidade física e química. Estas diferenças físico-químicas podem modificar o comportamento da molécula quando em um meio biológico, alterando sua biodisponibilidade e, consequentemente, sua eficácia. Os excipientes também podem apresentar transformações polimórficas, sendo um fator não menos preocupante para a indústria farmacêutica.
Tendo em vista a importância do fenômeno do polimorfismo para a qualidade dos medicamentos, os órgãos reguladores têm acelerado a adoção de novas normas sobre o tema no setor farmacêutico, de modo a minimizar os riscos à população, exigindo, para o registro de medicamentos, estudos que comprovem o monitoramento e o controle de qualidade das formas cristalinas existentes.
O guia mais completo atualmente disponível foi publicado pela agência regulatória americana,  FDA (U.S. Food and Drugs Administration), em julho de 2007. Nesse guia, a FDA aborda os principais aspectos do fenômeno sobre a qualidade dos medicamentos e destaca a responsabilidade da empresa no controle da forma cristalina caso a biodisponibilidade possa ser afetada.

A ANVISA também possui regulamentação em que o tema polimorfismo é abordado. Neste caso, é solicitado para o registro de medicamentos informações sobre os prováveis polimorfos. A questão é que estas informações também são solicitadas apenas durante o momento do registro e para a substância ativa. Até mesmo em uma alteração pós-registro, testes específicos somente são previstos para a substância ativa.
A preocupação com a qualidade dos medicamentos liberados para a população é tão real, que a Anvisa lançou, em 14 de Setembro de 2014, o Programa Nacional de Verificação da Qualidade de Medicamentos (Proveme) que visa analisar mensalmente amostras de medicamentos do mercado. Inicialmente o Proveme vai analisar amostras dos medicamentos do “Aqui Tem Farmácia Popular” e do “Farmácia Popular”.

Portanto, se após o registro a empresa modificar o fornecedor de matérias-primas no dia-a-dia sem realizar os testes prévios que são necessários, um produto pode vir a ser liberado por uma empresa com qualidade insatisfatória, o que muitas vezes é identificado por consumidores mais atentos através de reclamações, gerando publicações de recolhimentos no Diário Oficial da União e no próprio site da Anvisa.

Mecanismos de controle e punição posteriores poderiam ser evitados considerando que a prevenção pelas próprias empresas seria bem mais fácil. E se ainda vemos notícias de problemas de qualidade nos jornais, devemos concordar com Henry Ford (1963-1947) através de sua célebre frase que diz: “qualidade significa fazer certo quando ninguém está olhando”.

Referências
-     Pita, João Rui. História da Farmácia. Coimbra: Minerva, 1998.
-     Site IBGE. Disponível em www.ibge.gov.br. 
-    Commission E. Antitrust: preliminary report of sector inquiry into pharmaceuticals – frequently asked questions. MEMO/08/746, 28 November 2008, p.1-5. 2008
-     ROCHA, M. Michele et al. Innovation as a Critical Success Factor: an Exploratory Study about the Partnership among University with Pharmaceutical Industry in Brazil. Journal of technology management & innovation, v. 7, n. 3, p. 148-160, 2012
-      (PHRMA), P. R. A. M. O. A. Drug Discovery and Development: Understanding the R&D Process. Washington, DC. Fevereiro 2007
-     Escola Nacional de Saúde Pública. Histórico das Boas Práticas de Fabricação. Disponível: http://www.boaspraticasfarmaceuticas.com.br/.../Histórico%20BPF.aula%20módulo%20III.ENSP.ppt-. Acesso em: 20/05/2015.
-     Resolução Anvisa RDC Nº 17, de 16 de Abril de 2010. Dispõe sobre as Boas Práticas de Fabricação de Medicamentos.
-     S. Vippagunta, H. G. Brittain, D. J. W. Grant, Crystalline solids, Advanced Drug Delivery Reviews, (48), 3-26, 2000.
-     W. A. Ritschel, G. L. Kearns, Handbook of basic pharmacokinetics: including clinical applications, 5 edição, Washington: American Pharmaceutical Association, 1999.
-     R. Hilfiker, Polymorphism: in the Pharmaceutical Industry, WILEY-VCH Verlag GmbH & Co, Weinheim, 433 p, 2006.
-     Raw AS. et al. Regulatory considerations of pharmaceutical solid polymorphism in Abbreviated New Drug Applications (ANDAs). Adv Drug Deliv Rev. 2004 Feb 23;56(3):397-414.
-     Resolução Anvisa RDC Nº 60, de 10 de Outubro de 2014. 
- Dispõe sobre os critérios para a concessão renovação do registro de medicamentos com princípios ativos sintéticos e semissintéticos, classificados como novos, genéricos e similares, e dá outras providências.
-     Resolução Anvisa RDC 48, de 6 de outubro de 2009. Dispõe sobre realização de alteração, inclusão, suspensão, reativação, e cancelamento pós-registro de medicamentos e dá outras providências.


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